Por Fábio Ribeiro
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20 de outubro de 2025
A biologia molecular avançou a passos largos nas últimas décadas, e poucas tecnologias ilustram essa evolução de forma tão marcante quanto o Sequenciamento de Nova Geração (NGS), t ambém conhecido como Sequenciamento em Larga Escala ou Sequenciamento Paralelo Massivo. Longe de ser apenas uma ferramenta de laboratório, o NGS se tornou um pilar fundamental que sustenta avanços revolucionários na pesquisa e na prática clínica. Mas, o que exatamente é o NGS e qual o tamanho do seu impacto? Do "Um de Cada Vez" ao "Milhões ao Mesmo Tempo": A Evolução do Sequenciamento Para entender o NGS, é útil olhar para seu predecessor. O Sequenciamento de Sanger, desenvolvido na década de 1970 por Fred Sanger, foi uma inovação monumental que nos permitiu ler o DNA pela primeira vez. Ele foi a base do Projeto Genoma Humano. No entanto, o método Sanger sequenciava uma única molécula de DNA por vez, tornando-o lento e caro para projetos em larga escala. O NGS rompeu essa barreira ao permitir o sequenciamento, em paralelo, de milhões a bilhões de fragmentos de DNA em uma única corrida. Essa capacidade massiva de processamento resultou em uma redução exponencial de custos e de tempo, democratizando o acesso à informação genômica. Como o NGS Funciona: Os Pilares Tecnológicos das Leituras Curtas e Longas Embora todas as plataformas de NGS compartilhem o objetivo de sequenciar DNA em paralelo, os mecanismos para atingir esse objetivo variam significativamente, especialmente entre tecnologias de leituras curtas (short reads) e de leituras longas (long reads). 1. Tecnologias de Short Reads (Ex.: Illumina): As plataformas de short reads, como as da Illumina, dominam o mercado devido à sua alta acurácia e ao alto rendimento. O processo geralmente envolve: Preparação da Biblioteca: O DNA (ou RNA convertido em cDNA) da amostra é fragmentado em pedaços curtos (geralmente de 150-500 pb). Adaptadores específicos são ligados às extremidades desses fragmentos. Amplificação em Ponte (Bridge Amplification): Os fragmentos com adaptadores são imobilizados em uma flow cell (uma lâmina de vidro com oligonucleotídeos complementares aos adaptadores). Cada fragmento se liga e é clonado in situ , formando "clusters" de milhões de cópias idênticas. Essa amplificação em ponte é crucial para gerar um sinal forte o suficiente para detecção. Sequenciamento por Síntese (SBS): Nucleotídeos modificados com terminadores reversíveis e fluorocromos são adicionados de forma sequencial. A cada ciclo, apenas um tipo de nucleotídeo se incorpora. Após a incorporação, uma câmera registra o sinal de fluorescência (cor) que identifica o nucleotídeo. O terminador e o fluorocromo são quimicamente removidos, permitindo o início do próximo ciclo de incorporação. Este processo cíclico constrói a sequência de cada fragmento no cluster, resultando em leituras curtas e de alta fidelidade. Análise Bioinformática: As leituras curtas (reads) são então alinhadas a um genoma de referência para a identificação de variantes, a quantificação de expressão gênica, etc. 2. Tecnologias de Long Reads (Ex.: PacBio SMRT e Oxford Nanopore): As plataformas de long reads, como as da Pacific Biosciences (PacBio) e da Oxford Nanopore Technologies (ONT), são valorizadas por sua capacidade de atravessar regiões repetitivas e estruturalmente complexas do genoma, embora historicamente tenham taxas de erro mais altas (que vêm diminuindo rapidamente). PacBio (Single Molecule, Real-Time - SMRT Sequencing): Preparação da Biblioteca: Moléculas de DNA são preparadas em um formato circular ( SMRTbell™ ) e ligadas a uma enzima, a DNA polimerase. Sequenciamento em Tempo Real: Cada SMRTbell se liga a um dos milhões de zero-mode waveguides (ZMWs) em uma SMRT Cell . Cada ZMW é um poço minúsculo que isola uma única molécula de DNA polimerase. Nucleotídeos marcados fluorescentemente (com o fluorocromo ligado ao fosfato) são adicionados. À medida que a polimerase incorpora os nucleotídeos, o fluorocromo é liberado e detectado em tempo real por um laser no fundo do ZMW. Isso permite ler a sequência de uma única molécula de DNA de forma contínua e produzir leituras muito longas, de dezenas a centenas de kilobases. Oxford Nanopore Technologies (ONT): Preparação da Biblioteca: Moléculas de DNA ou RNA são ligadas a proteínas motoras e ligadores, que as direcionam aos nanoporos. Não há amplificação por PCR, o que ajuda a preservar as modificações epigenéticas e a evitar vieses. Sequenciamento por Nanoporos: A molécula de DNA/RNA é desenrolada e passa através de um nanoporo (uma proteína inserida em uma membrana eletricamente condutiva). À medida que a molécula passa, ela causa uma interrupção única na corrente elétrica que flui através do poro. Diferentes sequências de nucleotídeos (ou combinações de 3-5 nucleotídeos, chamadas k-mers) produzem um padrão de corrente elétrica distinto. Sensores detectam essas alterações de corrente e algoritmos complexos de machine learning as traduzem em sequências de bases. Vantagem: Leituras ultralongas (até milhões de bases), sequenciamento em tempo real (dados disponíveis imediatamente) e portabilidade (MinION, Flongle) para aplicações de campo. Análise Bioinformática: As "reads" (sequências geradas) de ambas as tecnologias são então processadas por softwares de bioinformática especializados para controle de qualidade, alinhamento (ou montagem de novo ) e análise de variantes, expressão gênica, entre outros. As estratégias bioinformáticas diferem ligeiramente devido às características distintas de cada tipo de leitura (curta vs. longa, acurácia vs. comprimento). O Impacto Transformador do NGS na Pesquisa O NGS não apenas acelerou o seq uenciamento de genomas; ele abriu portas para novas abordagens de pesquisa, permitindo uma exploração sem precedentes da biologia molecular. Genômica e Genética: Sequenciamento de Genomas Completos (WGS) : Permite mapear todas as variantes genéticas (SNPs, indels, SVs) em um organismo, essencial para estudos de doenças complexas e evolução. Sequenciamento de Exomas Completos (WES) : Foca apenas nas regiões codificadoras de proteínas (exons), uma abordagem mais custo-efetiva para identificar causas genéticas de doenças mendelianas e câncer. Transcritômica (RNA-Seq): A transcritômica estuda o conjunto completo de moléculas de RNA (o transcriptoma) presentes em uma célula ou organismo em um dado momento. O RNA-Seq, ao sequenciar essas moléculas, permite não só quantificar a expressão de genes, mas também identificar novas transcrições e variantes de splicing. Existem diferentes estratégias de RNA-Seq, dependendo do que se deseja investigar: RNA-Seq para Transcritoma Completo (Total RNA-Seq): Sequenciamento de todos os tipos de RNA (mRNA, rRNA, tRNA, snRNA, snoRNA, etc.) presentes na amostra. É útil para uma visão abrangente da paisagem de RNA, especialmente em organismos sem um genoma de referência bem anotado, ou para investigar RNAs não codificantes. RNA-Seq com Seleção de Calda Poli-A (Poli(A) RNA-Seq): Foca na maioria dos mRNAs eucarióticos, que possuem uma cauda de poliadenina (poli(A)). Esta técnic a utiliza oligo-dT para isolar seletivamente mRNAs, eliminando RNAs ribossomais (rRNA) abundantes, que geralmente não são informativos para a expressão gênica e poderiam consumir muitos reads de sequenciamento. É o método mais comum para quantificar a expressão gênica de mRNAs. RNA-Seq para Pequenos RNAs (Small RNA-Seq): Projetado especificamente para sequenciar RNAs com menos de 200 nucleotídeos, como microRNAs (miRNAs), piwi-interacting RNAs (piRNAs) e small interfering RNAs (siRNAs). Esses pequenos RNAs são importantes reguladores da expressão gênica e estão envolvidos em diversos processos biológicos e doenças. Epigenômica (ChIP-Seq, ATAC-Seq, etc.): Permite estudar modificações no DNA (como metilação) e associações com proteínas (histonas, fatores de transcrição), revelando como a atividade gênica é regulada sem alterar a sequência de DNA. Microbiômica (16S rRNA Sequencing, Shotgun Metagenomics): Revolucionou o estudo de comunidades microbianas em ambientes complexos (intestino, solo, etc.), identificando espécies e seu potencial funcional sem a necessidade de cultivo laboratorial. O NGS na Vanguarda da Medicina Clínica A translação do NGS para a prática clínica é talvez seu impacto mais direto e visível, revolucionando diagnósticos, prognósticos e abordagens terapêuticas. Diagnóstico de Doenças Raras: O WES (Sequenciamento de Exomas Completos) e o WGS (Sequenciamento de Genomas Completos) têm um papel crescente no diagnóstico de doenças genéticas raras, muitas vezes encerrando longas "odisseias diagnósticas" para pacientes e famílias. Exemplo: Um bebê com uma condição neurológica grave e não diagnosticada, após anos de testes inconclusivos, pode ter seu exoma sequenciado. A identificação de uma mutação em um gene específico pode não só levar a um diagnóstico preciso, como também abrir caminho para terapias direcionadas ou para um acompanhamento mais adequado. Em alguns casos, isso evita procedimentos invasivos e reduz o estresse familiar. Oncologia de Precisão: No tratamento do câncer, o sequenciamento de tumores (painéis gênicos, WES ou WGS) identifica mutações específicas que podem guiar a escolha de terapias-alvo e imunoterapias, revolucionando a medicina personalizada em oncologia. Exemplo: Um paciente com câncer de pulmão não pequenas células pode ter seu tumor sequenciado. Se for encontrada uma mutação no gene EGFR , ele pode ser elegível para um inibidor de EGFR , um medicamento que atua especificamente sobre essa alteração, oferecendo um tratamento mais eficaz e com menos efeitos colaterais do que a quimioterapia convencional. O NGS também pode detectar mutações que conferem resistência, permitindo a mudança para outra linha terapêutica. Farmacogenômica: Ajuda a prever como um paciente responderá a um medicamento com base em seu perfil genético, otimizando dosagens e evitando reações adversas. Exemplo: Antes de prescrever um antidepressivo, como um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS), o médico pode solicitar um teste farmacogenômico. Se o paciente possuir variantes genéticas que afetam o metabolismo do medicamento (por exemplo, no gene CYP2D6 ), o médico pode ajustar a dose inicial ou escolher um medicamento alternativo para garantir a eficácia e minimizar efeitos colaterais. Diagnóstico Pré-Natal Não Invasivo (NIPT): O sequenciamento de DNA livre circulante no sangue materno (cfDNA) permite rastrear com alta precisão anomalias cromossômicas fetais (como a Síndrome de Down) de forma segura, sem os riscos de amniocentese ou biópsia de vilo corial. Exemplo: Uma gestante com idade avançada ou com outros fatores de risco para anomalias cromossômicas pode realizar o NIPT com uma simples coleta de sangue. O NGS analisa o cfDNA fetal na circulação materna, detectando excessos ou deficiências cromossômicas. Um resultado positivo indicará a necessidade de um teste diagnóstico confirmatório, mas a alta sensibilidade e especificidade do NIPT reduziram drasticamente a necessidade de procedimentos invasivos em gestações de baixo risco. Vigilância Epidemiológica e Diagnóstico de Patógenos: Em surtos e pandemias (ex.: COVID-19), o NGS permitiu o rápido sequenciamento do genoma de patógenos, rastreando sua evolução, identificando variantes e informando estratégias de saúde pública. Exemplo: Durante a pandemia de COVID-19, o sequenciamento rápido do genoma do SARS-CoV-2 por NGS permitiu identificar o surgimento e a propagação de novas variantes (como Delta e Ômicron) quase em tempo real. Essa informação foi crucial para entender a transmissibilidade, a patogenicidade e a eficácia das vacinas contra essas variantes, direcionando políticas de saúde pública e o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas. Desafios e o Futuro do NGS Apesar dos avanços, o NGS ainda enfrenta desafios, como a complexidade da análise bioinformática, a interpretação de variantes de significado incerto e a necessidade de padronização em ambientes clínicos. No entanto, a constante inovação em plataformas (com leituras mais longas e menos erros), o barateamento contínuo e o aprimoramento das ferramentas de IA/Machine Learning prometem superar essas barreiras. O Sequenciamento de Nova Geração não é apenas uma tecnologia; é uma janela para a compreensão profunda da vida, abrindo caminho para uma era de medicina mais personalizada, precisa e eficaz. Na BioMelting , estamos entusiasmados em acompanhar e contribuir para essa revolução, "derretendo" os desafios e transformando dados genéticos em conhecimento que cura e inova. Quais outras aplicações utilizando NGS você conhece ou gostaria de ver mais exploradas? Compartilhe sua opinião nos comentários! Referências Goodwin S, McPherson JD, McCombie WR. 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